domingo, 27 de abril de 2008

O silêncio

Acordou e espalmou a mão esquerda. Lentamente abriu os olhos e olhou. Viu que todos os dedos continuavam lá, e sem membrana alguma entre eles. Sentiu um alívio intenso, coberto pela ansiedade de sempre. Ouviu a brisa fresca soprar e contemplou o ar azul marinho. Sentiu a areia fria sob seu corpo seco, e viu que tinha sede. Ergueu-se e pôs-se de pé. Esticou-se e em silêncio bocejou. Pensou em apanhar um coco e beber. Olhou para todos os lados. Hesitou. E viu que não tinha forças para tanto.

Não ainda, pensou. Com a resignação de sempre, caminhou até a borda. Contemplou ainda uma última vez aquela noite o ar, e com agilidade pulou. A água espalhou-se por quilômetros em muitos pingos, e ela mergulhou fundo quando sua cauda instantaneamente reavivou em mil escamas cinzentas. Prateadas quando há luar, ela pensou ainda, seu último pensamento humano antes de se perder na escuridão profunda das águas.

A água que era seu lar e sua prisão, da qual ela ainda iria se libertar definitivo. Ou na qual iria se encerrar sem chance de volta. Um dia.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

E agora, José?

As brigas e cisões em grupo podem ser desagradáveis e constrangedoras, mas costumam ser bastante reveladoras. Aparências frágeis são rasgadas com as pontas dos dedos, e de tal forma que a cortina não pode ser recosturada.
Melhor assim?
Não sei, quem teve a cortina rasgada que avalie. A minha, de papel translúcido, continua lá. E se depender de mim, vai continuar me resguardando o resto da vida. Não quero ser arrancada da minha cabine e exposta a toda a gente. Ainda espero conservar um pouco da diplomacia que me resta.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Para ver

É preciso estar na sintonia certa (além de um certo ponto, e antes de outro determinado) para ver as fadas. Ontem de manhã eu consegui, e anteontem quando voltava da faculdade, também. Elas estavam lá esvoaçando, pequenas e coloridas, pelo canteiro do portão do prédio. Faziam seus barulhos de zunido por causa das asas de inseto, e brincavam entre as folhas das plantas. Vi uma lilás, uma amarelinha, e uma verde. Depois, no canteiro da avenida, quase vi outra — foi muito rápido, um revoar de asas, e eu não consegui distinguir qual era.

Mas não é assim fácil topar com uma fada. Algumas coisas essenciais são necessárias para vê-las. Primeiro é preciso estar num estado de plenitude — não precisa ser reverberante, porque elas vão fazer isso por você. Segundo, é preciso estar com saudade delas; e eu estava com uma saudade tão grande, daquelas que até crescem como um balão dentro do peito. E terceiro, é preciso olhar atentamente, procurando por elas. Fadas não se deixam enxergar por quem não está interessado nelas.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

As pombas

Reconheço as pombas quando elas pousam no chão e começam a andar. Aquelas cabecinhas horrorosas avançando e recuando com violência, furando o ar como se abrissem a passagem para o resto do corpinho desajeitado, e soltando aquele grugrulejo terrível...

Que passem sempre longe de mim, as pombas. Delas, só quero as fontes e as estátuas. E minhas janelas de volta.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Sol? Pra quê?

O céu nublado e os 18°C do termômetro me deixam leve, tão mais leve que consigo respirar livremente. Quem foi que disse que o ar frio é mais pesado? Bobagem desses cientistas. Fosse mais pesado era mais fresco aqui embaixo, e ele não escapuliria para altitudes mais altas na primeira oportunidade.

Quero o ar sempre assim. Quero a leveza de não me sentir sufocada a cada inspiração, e de não sentir o peso do sol a cada passo da ladeira, avante e para cima. Quero caminhar sem apertar os olhos, enxergando com clareza, sem ver turvar aquele primeiro metro acima do asfalto.

Quero o frescor das folhas de hortelã sob um céu nublado e tão leve que quase flutua.

Sol? Só se for em cima de grama verde, com a copa de uma árvore entre nós, e sem formigas no meu pé.