sábado, 21 de novembro de 2009

Mortes

Morro de saudades do meu gato, das minhas árvores, da varanda, de ter os olhos cheios de terra quando venta. Mas morro ainda mais se voltar para um lugar onde não se houve carros passando na rua, e corre-se sempre o risco de ser atropelado por uma bicicleta.

Talvez, entre todas as mortes, aquelas causadas pelas saudades sejam as mais felizes de se sentir.

domingo, 31 de maio de 2009

Pecado

Era tão fascinada por boas histórias, e as amava tão ardorosamente, que não se importava com que heresias continham. Amava mais as histórias do que tudo o que era sagrado e, assim, tornava-se herege também. 

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Meus pátios

A chuva que me inunda e faz lagoas no jardim me acalma a alma de um tanto que eu poderia ficar pra sempre assim, ouvindo ela cair, sentindo arrepiar a pele e olhando o pingar inconstante das folhas secas das palmeiras. 

Pena é não poder abrir a cortina e ficar olhando em volta, pois aqueles pares todos de olhos não sairiam de cima de mim, e eu não suportaria muito tempo mais. 

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Verde

Talvez o cheiro de grama cortada seja a única coisa capaz de me aquecer em um dia frio. 

quarta-feira, 18 de março de 2009

O sítio

Joana levantou-se cedo naquela manhã. Queria dar umas voltas, fazer um reconhecimento do lugar, andar por aí pensando na vida. Queria um tempo para si, longe da poluição sonora da casa acordada — aquele emaranhado de sons e gritos e rádio ligado e panela no fogo e água fervendo e tanquinho batendo e cachorro latindo e galinha cocorejando e criança correndo e bebê chorando e gente rindo e fofocando. Saiu descalça mesmo, sentindo a terra arenosa, macia de não ter sido lavada pela chuva que não caía há semanas. Andou por minutos incontáveis, passando por goiabeiras com toscos balanços pendurados, mangueiras, limoeiros, árvores que nem sabia o nome, sapos e formigas, até chegar perto do rio. Não sabia nadar — ficou só olhando as canoas flutuarem amarradas nos tocos à beira do barranco, se imaginando tomando aqueles remos e descendo na calmaria daquele rio sem correnteza, em busca dos peixes maiores e dos lambaris mais saltitantes.

Mas houve o estrondo, e Joana não soube o que fazer por um instante interminável. Não soube nem o que pensar. Então se levantou de repente e saiu correndo de volta à casa que erguia-se meio inclinada entre a horta e os poleiros onde dormiam as galinhas. Chegou e viu as crianças agarrando-se umas às outras, chorando copiosamente. Não precisava que lhe contassem nada, porque soube, desde o dia em que chegou à casa, que aquela história acabaria em tragédia.

Ela atravessou a sala e a cozinha e chegou aos fundos. Viu Lucia, que sangrava pelos furos na testa e no peito, caída perto do tanque. A poça vermelha sobre o concreto aumentava devagar a cada segundo. O revólver Mário tinha levado consigo, com toda a certeza. E, ao lado do corpo, ele deixou o motivo do crime: uma foto de Lucia e Alberto, rasgada ao meio, suja de sangue.

Este, com certeza, já está morto também, pensou Joana. E fechou devagar os olhos da defunta, sem conseguir sentir qualquer pesar por ela.

  

domingo, 8 de março de 2009

O novo sempre vem?

Os velhos vícios que retornam. 
Primeiro, uma xícara de café por dia.
Depois, um cigarro ou dois por noite. 
Um disco por trajeto. 
Um sorvete por almoço.
As velhas obsessões, que fingem que vão embora, mas acabam por retornar. Fazendo lembrar do que já fui um dia, e de coisas que há muito tento esquecer. Atormentando um calmo coração que só quer o novo. Novos livros, novos discos, novos lugares, novos sonhos, novos quereres. Novos vícios. 
Mas ah!, os vícios. Os velhos vícios! 
Como se livrar dos hábitos encravados no peito e de tudo que já nos acostumamos a desejar?

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O não vivido

Todas as pessoas que eu não vi e os lugares que eu não conheci fazem uma falta tremenda, como se tudo — minha vida dependesse dessas instâncias. 


terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Roda viva


Talvez nossa história esteja fadada a essa interrupção eterna, ou um eterno continuar, sempre abruptamente encerrada em vírgulas, e nunca um ponto final.

Talvez nunca venhamos a encontrar nosso tempo, um tempo nosso de viver. Talvez seja esse nosso destino, de eternos desencontros, ou encontros tão breves e interrompidos que é como se não tivessem sido, ou tivessem sido só em sonhos.

Estancamos de repente e a roda viva carregou a roseira pra lá. Mas ainda gosto de muitas coisas aqui. Você não me deve nada, acredite. E mesmo que devesse, eu nunca te cobraria.

 

domingo, 4 de janeiro de 2009

Ritual

Os lugares que a gente viveu por muito tempo guardam com eles um pedaço de nossa alma, presa nas lembranças um passado que, mesmo que a gente não queira de volta, deixa uma saudade inexplicável e parece tão vivo... A infância que, relembrada, parece melhor do que foi, a adolescência que, relembrada, soa mais dramática do que o vivido. As lembranças todas que se perdem na espuma do copo, na visão do chão antigo, nos risos e nos pensamentos soltos, imagens de rostos conhecidos, memórias de uma gente que não se viu e talvez nunca mais se veja, nomes que não se esquece, feições que mudem tanto que talvez nunca mais se reconheça.

Há rituais dos quais não se deve nunca abrir mão. A peregrinação periódica de volta pra casa é um deles, e por quanto tempo ainda vou segui-lo é um mistério.

Talvez eternamente, pra pegar de volta, por uns dias, aquele pedacinho de alma que ficou preso nas ferragens de memórias fluidas e tão intrincadas, que deslizam sobre si próprias incessantemente, sem jamais se libertarem da prisão que encerram em si.