sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

de escrever

Ainda me lembro de você, verdinha e imponente na estante da sala. Feita de algum tipo de metal fundido -- seria ferro? -- com a fita soltando, dando tanto trabalho para arrumar, sujando minha mão de tinta. Ainda me vejo sentada na sua frente, mudando de cor -- preto, vermelho, preto, vermelho, preto, vermelho, preto. E quando a letra saía quase toda vermelha, mas com a pontinha de cima preta?

Ainda me lembro das revistas abertas ao seu lado, e dos índices gigantescos que você me ajudou a escrever. Com indicações, números de páginas, ressalvas e comentários. Quase me lembro das fotos que descrevemos juntas. Ainda queria tê-las, mas assim como você, não sei mais onde encontrá-las. Ainda fecho os olhos com força, às vezes, e tento me lembrar. É difícil, sei que a memória visual engana. Mas não me esqueço mesmo é das sensações que cada uma daquelas imagens me transmitia, e de como eu sonhava minha vida dentro delas.

Ainda me lembro de quando fui visitar mamãe no trabalho, e a vi usando uma fita de errorex. Achei fantástico! Não precisava mais apertar a mesma letra certa várias vezes em cima da errada para ela aparecer mais, e deixar a errada bem despercebida. Ou xiszinhos, para apagar uma palavra inteira. Bastava a modernidade da fita de errorex, rápido, limpo, e incolor; nem deixava sinais. Pena que não servia pro carbono... Ah!, o carbono! outra coisa que faz falta.

Ainda me lembro dos tratados em várias cópias que escrevi, com a sua ajuda e a dos carbonos. Os pretos, porque os azuis tinham aquela cara indesejável de prova da escola, e papai não gostava que os usasse com você, porque eles eram frágeis e você robusta.

Lembro do encanto que eram as suas parentas elétricas -- tinham a letra bem preta, e as teclas moles. Não faziam quase barulho, eram pequenas e um tanto estranhas. Papai sempre dizia que ia comprar uma daquelas, mas ele nunca o fez. Um dia, desistiu, disse para que uma elétrica, se existem os computadores? E eu cá comigo, pensei, mas computadores? ah, computadores, que graça têm? para que servem se não para desenhar? E papai falava em computadores, quando eu estava mais interessada em um videogame e uma tv nova.

E um dia você sumiu. Nem lembro de ter percebido -- há muito que você não morava com a gente, mas ficava guardada na estante gigante da sala de vovó. Há muito que eu lhe havia abandonado, trocado pelos computadores e impressoras. Com suas mil fontes e mil cores, para que ficar restrita ao pretovermelho e um tipo só? E os teclados novos tinham todos os números, e duas vezes!, e eu não precisava fazer o 1 do l. Eram moles e não me doíam os dedos. Podiam apagar palavras inteiras em dois segundos, sem precisar botar a fita de errorex sobre cada letra. Podiam colocar frases, e parágrafos inteiros em qualquer lugar da folha!

E eu muito facilmente te esqueci, deslumbrada com o mundo novo dos tubos catódicos sobre a escrivaninha. Te esqueci, mas com cada vez mais freqüência penso em você. E cá estou agora, com minhas reminiscências, perdida em lembranças de infância, que não têm mais registro em papel, nem em ferro pintado de verde com fita pretovermelha que não pára no lugar. Eu e minhas lembranças, que eu pesco vagando pelos remansos da mente, tentando lembrar de uma ou outra palavra registrada, dos cuidados com parágrafos, com travas e rolos girando, do papel colocado com cuidado para não sair torto, da concentração para não errar e não macular o papel com os xiszinhos dos erros, do carbono ajeitado para não sair do lugar, dos dedos manchados de preto, ou vermelhos de tanto datilografar...

2 comments:

Anônimo disse...

Eu sempre quis ter uma dessas pretovermelho... meu primo tinha uma que nunca usou! Como eu o invejava... Acho que ainda vou comprar uma... só pra matar minha vontade de criança. ;)

Lindo texto amiga. Você sabe mesmo como tratar as palavras. Beijos!

Leonardo Luis disse...

Gostei muito desse post. =]